Um mercado financeiro (por exemplo, uma Bolsa de Valores) nada mais é que um sistema
refletor de expectativas sobre a evolução dos lucros das empresas. Afinal, cada ação é apenas um
contrato que promete participação nesses lucros. Quando as perspectivas da economia são boas,
os investidores querem ter alguma participação nos lucros crescentes. Compram ações e, assim,
essas ações se valorizam. Esse processo tem uma grande virtude: oferece às empresas uma fonte
de captação de recursos alternativa aos empréstimos bancários.
Num mercado otimista, as empresas podem "abrir seu capital", ou seja, emitir certificados que
garantem aos compradores uma participação nos lucros. Com esses recursos, elas investem,
tornam-se capazes de lucrar mais, e retribuem aos investidores que compraram suas ações.
O lado perverso é que os mercados de ações oscilam ao sabor de notícias e condições que nada
têm a ver com a maneira como cada uma das empresas é administrada, usa tecnologia, expande
seu mercado ou gerencia mão-de-obra. Os valores na Bolsa sobem e descem se um ministro cai,
se estoura um escândalo no governo, se aparecem novos indicadores sobre a economia e, o que é
frequente, se há manipulação do mercado por grandes especuladores.
''Esquizofrenia'' capitalista
Entre o tamanho do mercado real e as expectativas do mercado financeiro infiltra-se um potencial
desacordo, que alguns economistas descrevem com um termo da psicanálise: esquizofrenia. É
como se o capitalismo fosse um sistema com duas personalidades que se reforçam, a real e a
financeira, mas que também podem entrar em conflito, aproximando a sociedade de uma espécie
de suicídio coletivo.
A grande expansão da Bolsa de Nova Iorque, no início do século, foi motivada por causas
semelhantes às que se observa hoje em dia (quando novamente Wall Street se valoriza
aparentemente sem limite). Novas tecnologias e, principalmente, novos mercados abriam
horizontes de crescimento sem precedentes para as empresas. Já naquela época, havia uma
internacionalização semelhante à globalização atual. Desde meados do século XIX, a
industrialização criava novos produtos e oportunidades de emprego. Bélgica, França, Estados
Unidos, Alemanha, Itália, Japão, Suécia e Rússia pareciam tornar universal o modelo de
desenvolvimento que havia prosperado sobretudo na Grã-Bretanha nas décadas anteriores.
O mercado mundial tornava-se uma espécie de fronteira sem limites para a expansão de empresas
e nações. Em 1854, a Grã-Bretanha já exportava mais de 20% de sua produção e detinha 40% do
mercado mundial de produtos manufaturados. Havia uma queda brutal nos custos de transporte,
em especial desde a introdução das ferrovias, por volta de 1860, e do uso em larga escala de
navios a vapor, depois de 1870. Na virada do século XX, a Grã-Bretanha já exportava 7% do PIB.
Para se ter idéia da importância disso, hoje os Estados Unidos exportam 11,4% do PIB.
O cenário era, portanto, favorável à expansão econômica e as Bolsas, em especial a de Nova
Iorque, refletiam esse impulso. Depois da Primeira Guerra Mundial (1914-18), quando a Europa
perdeu definitivamente a capacidade de liderança global, Wall Street foi ainda mais estimulada,
pois o mundo inteiro passava a depender da expansão dos Estados Unidos. A crise de 29, foi uma
ducha de água fria num mundo financeiro que parecia condenado à euforia. Mostrou que se vivia
aquela esquizofrenia entre o lado real e o lado financeiro.
O espelho partido
Fenômenos políticos como o nacionalismo, o nazismo e o comunismo, as lutas sindicais, as greves
e as revoluções fazem parte da história econômica do século XX. A dinâmica da economia não é
determinada apenas por novas tecnologias, administração eficiente de fábricas, redução de custos
de transporte e abertura de novos mercados. Ela é condicionada pela ação de Estados, pelas
pressões da sociedade, pela cultura política e por interesses estratégicos. E as formas de
organização do mercado de trabalho e da legislação social não são iguais em toda parte.
Dependem de processos de negociação que variam com as condições políticas, sociais e culturais.
É como se, ao lado da esquizofrenia entre o real e o financeiro, existisse outro tipo de cisão, de
fratura na organização das nações: de um lado, o capital, de outro, o social. De um lado, o impulso
para acumular lucros, reinvesti-los na produção ou distribui-los para os acionistas, num movimento
sem fim de valorização e expansão de empresas e mercados. De outro, tudo o que se pode
imaginar sob o termo "social" e que foge ao controle de cada empresa isoladamente. A história do
século XX é a história da expansão e multiplicação dos mercados de massa. Ao mesmo tempo, é
a história da organização das sociedades em que trabalhadores, consumidores, minorias, setores e
regiões se mobilizam para influenciar o modo como os mercados funcionam.
As crises financeiras - como as bolhas especulativas e as quebras de Bolsas - são episódios que
funcionam como espelhos dessa tensão entre duas histórias, a história do capital e a história social.
Quando os conflitos se tornam inadministráveis, não há tecnologia ou habilidade gerencial que
resolva. Em geral, ocorrem processos conhecidos como "queima de capital". Sonhos de
enriquecimento, empresas que pareciam promissoras, regiões que se acreditava "emergentes"
podem sucumbir repentinamente. Não é por acaso que a atividade de adivinhação da riqueza
futura no mercado financeiro seja conhecida como "especulação", de especular, ou seja, refletir
como num espelho. Na crise, o espelho se quebra e ninguém sabe ao certo o que é real e o que é
virtual. Em geral, seguem-se vários anos de azar.
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