A CONVENÇÃO DO IMPÉRIO

Republicanos homologam Bush sob protestos, mas com chances de vitória
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
Em janeiro de 2003, quando os republicanos escolheram Nova York para a convenção que homologaria a candidatura à reeleição de George W. Bush, a cidade parecia disposta, tanto quanto o resto do país, a apoiar a aventura militar no Iraque. Julgavam que, às vésperas do terceiro aniversário do ataque terrorista, a cidade aplaudiria efusivamente seu “vingador”. Enganaram-se quase tanto quanto sobre as flores com que os iraquianos receberiam os invasores. Pelo menos 200 mil marcharam nas ruas em protesto (meio milhão, segundo os organizadores), agitando lemas como “Falta um idiota no Texas”, “Nixon era melhor”, “mamães suburbanas pela mudança de regime” e “quero acreditar na democracia outra vez”. Segundo uma pesquisa da Zogby International, às vésperas da convenção, para 49,3% dos nova-iorquinos membros do governo souberam dos ataques com antecedência e decidiram não agir. Para os republicanos, não importa. Não tanto, pelo menos. Nova York não é os Estados Unidos. Há quatro anos, Bush perdeu lá, como também na maioria dos estados mais populosos e desenvolvidos. No voto popular, foi inequivocamente derrotado. Chegou à Casa Branca graças a um sistema anacrônico e pouco transparente de eleição indireta e à maneira como seus partidários puderam bloquear o voto de milhares de eleitores negros e manipular a apuração dos duvidosos resultados da Flórida. Isso pode acontecer outra vez. Mesmo depois de um inédito festival de best sellers atacando Bush – tantos deles escritos por ex-colaboradores próximos – e do sucesso de bilheteria do documentário crítico de Michael Moore, as pesquisas de opinião continuam a mostrar um virtual empate entre os principais candidatos. A pesquisa ABC News-Washington Post, com margem de erro de 3%, indica 48% para cada um dos dois principais candidatos entre eleitores “prováveis”. Em 2000, Al Gore teve 48,6% dos votos, Bush 48,3%. Pelo voto indireto, se a distribuição regional das preferências for semelhante à de 2000, um empate no voto popular traz a reeleição sem necessidade de maquinações tão flagrantes. Bush poderia ganhar com uma desvantagem de até 3%, se vencer, ainda que por uma margem minúscula, em estados como Flórida, Ohio e Pensilvânia.
Luto e luta.Em 2001, Nova York marchou contra o terror da Al-Qaeda. Três anos depois, o alvo passou a ser o terror de Bush
O atual mandato é o primeiro desde Herbert Hoover, o presidente da Grande Depressão, que termina com um número menor de empregos no país do que quando começou. Mas hoje, com a economia em relativa recuperação – ainda que de forma pouco sólida e menos vigorosa do que os republicanos gostariam –, parece pouco provável que os dois meses que restam até a eleição tragam novidades econômicas capazes de mudar o rumo da campanha. Ademais, a Casa Branca sempre pode berrar “alerta laranja”, providência após a qual o grau de aprovação a Bush sempre sobe alguns pontos. E os democratas mais desconfiados (ou realistas?) discutem uma suposta “surpresa de outubro” que a Casa Branca estaria tramando. Um “alerta vermelho” no meio da eleição, de preferência em um reduto democrata? Idéia maldosa, mas não para se desprezar. Além de trazer votos por reflexo condicionado, o pânico e os engarrafamentos desencorajariam o voto dos menos privilegiados (que, nos EUA, geralmente votam à tarde). Fraude em grande escala? Isso não é para brincar: pela primeira vez na história dos EUA, o candidato democrata organiza um esquema nacional de fiscais e advogados para acompanhar a apuração. Talvez devesse também convidar Jimmy Carter, a OEA e, quem sabe, Hugo Chávez para garantir a lisura do pleito. Um ataque às instalações nucleares do Irã? Essa última hipótese, ao menos, parece pouco provável para os analistas mais ponderados: o mundo não acaba depois das eleições e já está difícil lidar com o tamanho da encrenca que piora a cada dia no Iraque. A incapacidade do governo imposto pelos EUA de solucionar o impasse em Najaf sublinhou sua fragilidade e fortaleceu o aiatolá Al-Sistani, responsável pela mediação e pelo cessar-fogo que preservou o santuário xiita, agora sob a responsabilidade de seus partidários mais moderados. Mesmo derrotado militarmente nos confrontos com a ocupação, o radical xiita Al-Sadr saiu politicamente fortalecido e no firme controle do subúrbio de 2 milhões de habitantes, perto de Bagdá, que adotou o nome de seu pai. Enquanto isso, as cidades sunitas de Ramadi e Samarra se somaram à rebelião de Fallujah, deixando os fantoches de Washington cada vez mais isolados em Bagdá. As coisas também estão feias no Afeganistão, se alguém quiser saber. No domingo 29 de agosto, os talebans detonaram um carro-bomba em Cabul, na porta da filial local da DynCorp. Essa agência de mercenários, que também mantém forças no Timor, no Iraque, na Bósnia e na Colômbia, cuida no Afeganistão da segurança do presidente Hamid Karzai e está a treinar a polícia nacional. Morreram dez pessoas, inclusive três americanos. Se tais detalhes poderiam ou não favorecer o voto em Kerry, é menos claro. A melhor “surpresa de outubro” democrata seria seu candidato, de repente, mostrar-se um oposicionista de verdade e capitalizar o voto de uma importante parcela do eleitorado que, por mais que deteste Bush, não vê razões convincentes para votar – ou, em protesto, vota em Ralph Nader. Os debates que tradicionalmente opõem democratas e republicanos continuam presentes, sem grandes mudanças de tom e conteúdo nos últimos quatro (ou 20) anos. Kerry promete cortar impostos da classe média baixa e Bush, manter os cortes nos impostos dos mais ricos. Os primeiros defendem a educação fundamental pública e a previdência social, os últimos querem privatizá-las. Os democratas defendem a tolerância da diversidade e a liberdade de costumes, os republicanos (embora, na maioria, já se rendam à inevitabilidade da diversidade racial) insistem, no plano cultural, em retornar ao imaginário da comunidade religiosa, puritana e homogênea fundada pelos imigrantes do Mayflower. Mesmo assim, esta campanha eleitoral é visivelmente mais exaltada que as anteriores. A história dos três anos posteriores ao atentado de 11 de setembro, mesmo se não chegou a mudar profundamente a correlação de forças entre republicanos e democratas, aprofundou a divisão entre os eleitores. Não tanto, porém, entre os candidatos, ao menos de uma forma que seja compreensível e convincente para todos os eleitores. Ambos evitam explicitar a questão mais nova e evidentemente mais palpitante para a imaginação popular: devem os EUA criar um Império? Muitos membros da equipe de Bush, sem dúvida, já escreveram isso com todas as letras e o próprio presidente os endossou – se não com palavras, certamente com suas ações. Do outro lado, muitos democratas – e até alguns republicanos – denunciam essa pretensão. Prestigiados intelectuais de oposição, mesmo com todas as reservas, pedem votos para Kerry por acreditar que esse candidato não pode ser pior que Bush nesse aspecto. Talvez tenham razão, mas ele mesmo não assume uma posição explícita, seja com palavras, seja com ações. Há muito, os norte-americanos se espelham em Roma – ou, para ser mais exato, em leituras populares da interpretação da História Romana por Edward Gibbon, historiador inglês que publicou o primeiro volume de Declínio e Queda do Império Romano no mesmo ano em que os EUA proclamaram sua independência (o último saiu dois anos depois). Até a ficção científica – da Fundação de Isaac Asimov à Guerra nas Estrelas de George Lucas – usa e abusa desse paradigma. Muitos dos novos filhos da águia compartilham a convicção de Gibbon de que o Império – com todas as suas conseqüências de escravidão, concentração abusiva de riquezas e violência em massa – foi uma idéia maravilhosa e que sua decadência poderia ter sido evitada se a acomodação preguiçosa ao conforto da vida civilizada e a corrupção moral de seus líderes tivessem sido combatidas com firmeza, coragem e fibra militar. Outros preferem identificar-se com a Roma dos primórdios republicanos e denunciar presidentes de propensões imperiais como candidatos a César, ou apegar-se à crítica de Gibbon ao fanatismo e intolerância (que, por algum motivo, os conservadores julgam aplicar-se apenas à Igreja Católica). Mas aceitam esse campo de batalha imaginário e seus pressupostos, ignorando a pertinência de outros possíveis “espelhos” (por que Roma e não Atenas?), os avanços na compreensão da história antiga e sua dinâmica desde Gibbon – e, é claro, a enorme distância entre a realidade antiga e a moderna.
Churchill.Os republicanos jamais o deixarão descansar em paz
Mesmo quando discutem os índices de desemprego ou o direito ao aborto, as verdadeiras questões que os eleitores se fazem são as falsas. A República está em perigo, pensa a oposição mais ingênua: qual candidato tem mais respeito pelas instituições republicanas? Precisamos de um Império, pensam os republicanos, qual candidato é mais capaz de comandá-lo? Ou pior: já temos o Império, como não seria traição destituir o Imperador em plena guerra? Mesmo se, durante a própria convenção, este inesperadamente confessa a uma grande rede de tevê que não há como vencer a “guerra” contra o terror. Na vida real, os problemas são outros. A economia norte-americana, mesmo em recuperação, enfrenta desequilíbrios que a colocam na dependência crescente da disposição de europeus, árabes e asiáticos para financiar seus déficits comerciais. Os limites naturais à produção de petróleo e os limites ambientais ao seu consumo exigem medidas corajosas para conter o consumo de combustíveis. Ainda mais urgente é a lição não aprendida há três anos: se os EUA e seu mercado financeiro continuarem a acreditar que o mundo gira em torno de seu umbigo e não buscarem uma ordem internacional um pouco mais justa, as periferias miseráveis continuarão a explodir e os fragmentos a cair sobre suas cabeças. Mas, se o imaginário pode ser denunciado e criticado, não pode ser ignorado. E, nesse aspecto, os republicanos falam aos próprios partidários melhor do que Kerry aos seus. O ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani comparou a Winston Churchill um presidente que, ao saber do ataque ao World Trade Center, passou sete minutos folheando uma historinha infantil em frente às câmeras e depois usou a catástrofe como pretexto para invadir um país alheio a ela. O ex-fisioculturista e atual governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, com sua costumeira civilidade, chamou de mariquinhas (girlie men) os críticos dos rumos da economia, repetindo o que já havia dito aos democratas de seu Estado que questionaram sua proposta de orçamento. Quanto a Kerry, o máximo a que este se atreveu é dizer que, se fosse presidente, teria dado um rosto mais internacional e menos norte-americano à ocupação. Uma tentativa de se equilibrar em cima do muro e, se quisermos ser caridosos, um aceno a uma espécie de multilateralismo unilateral – só que as nações, em sua maioria, não quiseram a invasão e só têm a agradecer por não terem sido mais envolvidas nesse grave erro, cuja responsabilidade o senador Kerry compartilhou ao endossar a ação unilateral de Bush. É uma falsa alternativa, na realidade e na imaginação. Queira-se o império ou não, pouca diferença faz. Ainda menos para quem sabe que os verdadeiros problemas são outros.
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2004-09-11

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